Nasci em Vitória no dia 10 de agosto de 1948, mas me criei no Rio, mais especificamente em Copacabana, no Posto 6, na Bulhões de Carvalho – rua que, segundo Paulo Francis, era o pesadelo dos revisores de jornais. Afinal, num só nome, havia dois palavrões cabeludíssimos à espreita.
Sou neto e bisneto de imigrantes portugueses, que saíram da região do Porto e do Vizeu e foram para Petrópolis, no Rio de Janeiro. Isso pelo lado do meu pai. Já as origens da família de minha mãe são mais nebulosas. Sei apenas que os pais de meu avô eram pequenos plantadores de café do Norte do Espírito Santo. A duras penas, ele formou-se em engenharia e passou boa parte da vida construindo ferrovias. Deixou um livro belíssimo, “O desbravamento das selvas do rio Doce”, sobre a epopéia da construção da Vitória a Minas.
Éramos nove irmãos, uma família grande mesmo para os padrões da época. Sempre me considerei um privilegiado por isso. Quem se cria no meio de muita gente aprende, desde pequeno, a dividir sem ser passado para trás e a abrir caminho sem dar cotoveladas nos outros. A cada momento topa com novidades, recebe muitas influências diferentes e vive num ambiente em permanente ebulição.
Meu pai, Mário Martins, era jornalista e político. Foi um ferrenho opositor da ditadura de Vargas, o que o levou a ser preso várias vezes. Ajudou a fundar a UDN, elegeu-se vereador e deputado federal, renunciou ao mandato de deputado por divergências com o partido, foi senador e acabou cassado depois do AI-5. Minha mãe, Dinah, embora tenha se formado em Direito e Farmácia, nunca advogou ou aviou receitas. Foi mãe e mulher em tempo integral. Segurou a barra de todos nós.
Fiz meus estudos em excelentes escolas, todas públicas: o primário na rede pública municipal, o ginásio no Colégio Pedro II e o clássico no Colégio de Aplicação da UFRJ. Comecei a trabalhar cedo – e, como não poderia deixar de ser, em jornal. Aos 15 anos, entrei como estagiário na “Última Hora”. Durante três meses, cobri polícia e buraco de rua, até que me apareceu algo melhor para fazer. O movimento sindical vivia grande agitação em 1963 e a agência de notícias Interpress precisava de um repórter iniciante para acompanhá-lo. Moleque, logo caí nas graças dos dirigentes dos trabalhadores. Passei quase um ano freqüentando assembléias, assistindo discussões que volta e meia acabavam em pancadaria, vendo greves nascer e morrer, e conversando com gente interessante. Foi um aprendizado fantástico.
Enquanto isso, nas horas vagas – como tinha horas vagas se estudava, trabalhava, fazia esportes, mexia com o grêmio e saía com meus amigos? – , lancei uma revista de política e cultura voltada para os secundaristas cariocas, junto com mais três companheiros (José Roberto Spiegner, talvez o mais talentoso dos quatro, seria morto mais tarde lutando contra a ditadura). No final do governo Goulart, as reformas de base pareciam ao alcance da mão, acreditávamos que o Brasil estava prestes a mudar e queríamos participar daquela virada.
Aí veio o golpe de 64. Da noite para o dia, a festa acabou. O presidente da República foi deposto, o Congresso manietado, os sindicatos amordaçados, e as liberdades restringidas. E o que é pior: não houve qualquer resistência séria.
Meses depois, a Interpress fechou. Durante algum tempo, fiz uns bicos nas revistas “Chuvisco” e “Manchete” e trabalhei numa agência de publicidade, mas sem entusiasmo. Cada vez mais, meu interesse estava na política. Como muitos jovens, achava que o mais importante era resistir à ditadura. No Colégio de Aplicação, logo reorganizamos o movimento estudantil. Fazíamos de tudo para reunir os alunos e botá-los em ação. Nos fins de semana, às escondidas, estudávamos marxismo e realidade brasileira. Em outras escolas e, principalmente, nas universidades, passava-se o mesmo, tanto que, dois anos depois do golpe, o movimento estudantil já estava novamente de pé.
Em 1967, entrei para a Faculdade de Ciências Econômicas da UFRJ, onde liguei-me à Dissidência, organização política formadas pelas bases universitárias que haviam rompido com o Partido Comunista. Logo fui eleito secretário-geral do Diretório Acadêmico e, meses depois, vice-presidente da União Metropolitana dos Estudantes.
1968 foi um ano crucial na luta contra a ditadura. Não tínhamos força para derrubá-la, mas podíamos lhe dar muito trabalho. E como demos … – greves, comícios-relâmpago, ocupações de escolas, passeatas, confrontos com a polícia. Pessoalmente, minha vida virou de pernas para o ar. Quase não freqüentava as aulas e passava os dias e as noites na agitação. Logo, logo passei a ser buscado pela polícia e tive de sair de casa. Em junho, depois de semanas de enfrentamento violentíssimo com a polícia nas escolas e nas ruas, o movimento estudantil chegou ao auge. No Rio, cem mil pessoas desfilaram pelo centro da cidade pedindo, entre outras coisas, mais verbas para a educação e a libertação de todos os estudantes presos. As autoridades ainda ensaiaram um diálogo com os manifestantes – tanto que fui a Brasília negociar com o presidente Costa e Silva -, mas a conversa não deu em nada. Semanas depois, a repressão recrudesceu. As manifestações, antes reprimidas a cargas de cavalaria, passaram a ser sistematicamente dissolvidas à bala. O movimento estudantil bateu num paredão.
Eleito presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ, nem cheguei a esquentar a cadeira à frente da entidade. Fui preso logo em seguida no Congresso da União Nacional do Estudante, em Ibiúna, São Paulo, em outubro. Fiquei dois meses atrás das grades – entre outros, foram meus companheiros de cela Luiz Travassos, presidente da UNE, que faleceu mais tarde num acidente de carro, Vladimir Palmeira, presidente da UME, José Dirceu, presidente da UEE de São Paulo, e Antônio Ribas, líder secundarista em São Paulo, morto na guerrilha do Araguaia.
Dei mais sorte do que eles, que ficaram presos por um bom tempo. Dois dias antes da edição do AI-5, fui libertado graças a um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Passei imediatamente para a clandestinidade.
O AI-5 foi o golpe dentro do golpe, significou mais ditadura dentro da ditadura. As possibilidades de atuação política legal reduziram-se praticamente a zero. O movimento estudantil refluiu. Cheguei à conclusão de que não havia outro caminho senão o de enfrentar a ditadura de armas na mão.
Meses depois já participava de ações armadas. Em setembro de 1969, integrei o grupo, formado por militantes da Ação Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, que seqüestrou o embaixador americano Charles B. Elbrick para forçar o governo a libertar 15 presos políticos.
A Junta Militar foi obrigada a ceder, mas dias depois a polícia estava nos nossos calcanhares. Muitos dos companheiros que participaram do seqüestro foram presos e comeram o pão que o diabo amassou nas mãos dos órgãos da repressão. Virgílio foi morto na tortura.
Com a cabeça prêmio, fui para Cuba, fazer treinamento de guerrilha rural. Nenhuma das técnicas que lá aprendi impactou-me muito, nem sei se me seriam de grande valia se tivesse chegado a combater na floresta. Nunca se apagará, no entanto, a impressão que me causou a convivência com o povo cubano: generoso, solidário e, acima de tudo, digno. Nunca me esquecerei tampouco dos meus companheiros de turma, nos montes de Pinar del Rio. Éramos 29. Destes, quinze morreram lutando contra a ditadura, quase todos executados na tortura.
De Cuba, viajei para o Chile. Cheguei a Santiago dias depois da posse de Allende. Deveria aguardar por lá até que pudesse retornar ao país com alguma segurança. Disseram-me que era questão de meses. Não foi. Foi de anos. Cercada, a guerrilha urbana no Brasil estava sendo massacrada e logo foi ficando evidente que ela tinha os seus dias contados. Ficando evidente é modo de dizer. Para quem estava metido naquele turbilhão, a coisa mais difícil do mundo era admitir que estávamos liquidados, reconhecer os erros e buscar novos caminhos. Tínhamos sobre os ombros o peso imenso dos nossos mortos. Mas o que tinha de se fazer, foi feito. No Chile de Allende, em meio às dilacerações da esquerda brasileira e às esperanças do povo chileno, nasceu meu filho Claudio.
No início de 1973, antes da queda de Salvador Allende voltei para o Brasil e fui viver clandestinamente em São Paulo. Fiquei até meados de 74 ajudando a juntar os cacos de parte da esquerda, que procurava entender por que havia montado e partido num rabo de foguete. Foi um período duríssimo. Vivia trancado o dia todo. Saía apenas à noite para fazer contatos rápidos. As regras de segurança rigidíssimas justificavam-se: se fosse preso, certamente, seria torturado e morto. Mas, apesar de tudo, valeu a pena. Aos poucos, o trabalho foi sendo retomado nos bairros, nas escolas, no movimento sindical. Algo se mexia. Muito pouco, é verdade, mas se mexia.
No primeiro semestre de 1974, no entanto, companheiros próximos de mim foram presos e, mais uma vez, tive de deixar o Brasil. Exilei-me na França, onde fiquei por quase três anos e diplomei-me na École des Hautes Études en Sciences Sociales, da Universidade de Paris. Se alguém acha que Paris vale um exílio, está muito enganado. Foi o período mais penoso da minha vida. Apesar da hospitalidade da esquerda francesa, sentia-me um estrangeiro e era tratado como um estrangeiro o tempo todo. Só pensava em voltar para o Brasil. Foi o que fiz em 1977.
A situação já era mais favorável: o movimento social reorganizava-se com mais rapidez e o MDB se convertia no desaguadouro da insatisfação nacional. Mais uma vez fui viver escondido em São Paulo. E lá fiquei até o final de 1979, quando saiu a anistia e, então, pude botar finalmente a cabeça de fora. Na clandestinidade, conheci Ivanisa Teitelroit, psicóloga clínica, com quem militei na época e me casei. Tivemos dois filhos: Julia e Miguel.
Anistiado, trabalhei no jornal Hora do Povo até 1982, quando me desliguei também do MR-8. Nessa época, candidatei-me a deputado e tive uma votação pífia. Nos dois anos seguintes, fui repórter do “Indicador Rural”, o que me permitiu viajar pelo Brasil todo e conhecer melhor o interior do país. Em 1985, entrei numa redação da grande imprensa, como redator do Globo e, em seguida, do Jornal do Brasil. Em 1987, mudei-me de mala e cuia para Brasília para cobrir a Constituinte – primeiro como repórter e depois como coordenador político da sucursal do JB. Mais tarde, trabalhei no SBT e no Estado de São Paulo. Em 1991 e 1992 fui correspondente do JB em Londres. Voltando ao Brasil, fiquei no mesmo jornal até 1994, quando me transferi para o Globo, no qual fui repórter especial, colunista político, editor de política e diretor da sucursal de Brasília.
Deixei o Globo no fim de 1997. De lá para cá, escrevi colunas para o Jornal de Brasília e para as revistas “República” e “Época”. Durante oito anos e meio fui comentarista político da TV Globo, da Globonews e da CBN. Atualmente, sou comentarista da TV e da Rádio Bandeirantes e assino uma coluna diária no portal iG.
Há quem pense que estou numa posição, hoje, em que as notícias caem no meu colo por gravidade. Quem dera … Na verdade, trabalho diariamente quase doze horas. Nada vem de graça, tudo custa esforço. Mas gosto do que faço. Embora, às vezes, me dê uma vontade danada de fazer algo bem diferente.